Não lembro mais em que ano foi, nem em qual mês e muito menos qual foi a data ou o dia.
O trauma foi tão grande que minha memória, que já não é lá essas coisas, fez questão de deletar estas datas. Mas o caso nunca sairá da minha memória, pois quase desisto da profissão por causa desse festival!
Lembro-me que estava no estúdio de jingles (Audiomidi) em que trabalho, quando Rogério, amigo meu e sócio da empresa de som PA Áudio, me ligou e falou que teria um trabalho para eu fazer. Era um festival da Philips que seria no Marco Zero e teria atrações internacionais. Ele queria que eu fizesse o monitor do evento. Para quem não sabe o que é “fazer o monitor” de um evento, vou tentar explicar.
Em um show temos dois tipos de som. Tem o som que as pessoas que vão ao show escutam na frente que é chamado por nós técnicos como som do P.A., que é a abreviação das palavras em inglês Public Address ou Endereçado ao Público. E tem o som que só os músicos que estão no palco escutam que chamamos de som de monitor. E a palavra já diz tudo. Este som serve para os músicos se monitorarem, e com isso tocarem no tom e ritmo certo. Cada músico tem (ou era pra ter) um monitor próprio aonde podemos colocar qualquer instrumento da banda para ele escutar, inclusive o próprio instrumento dele.
Agora vocês já sabem pra que servem aqueles fones nos ouvidos dos músicos ou as caixas que ficam no chão perto de cada músico. Mesmo não vendo nada no chão ou na cabeça do cantor, não se iludam, pois o cantor deve estar usando um sistema de monitor sem fio chamado In-Ear (dentro do ouvido). São fones minúsculos e até uns bem modernos pré-moldados que são feitos sob medida para o músico ou cantor. Esses fones e sistemas sem fio vieram ajudar e muito no resultado final do som de um show, pois os mesmo reduzem à zero a realimentação no palco, aqueles apitos chatos que vocês escutam em alguns shows e que não fazem parte da música. E dependendo da intensidade destas realimentações, o show pode parar mesmo. Por isso, este técnico que fica no palco e que muita gente ainda que vai a um show não sabe que ele existe, é de uma grande importância no resultado final do show ou do evento. Se não houver nenhuma caixa de monitor no palco e mesmo assim você ouvir aqueles apitos, pode ter certeza que a causa vem do som da frente que está retornando para o palco e causando as realimentações. Quem tem que resolver agora o problema é o técnico de P.A..
Comecei minha carreira aqui em Recife, fazendo o monitor da Banda Versão Brasileira, e naquela época existia uma diferença de cachê entre os dois técnicos. O de P.A. recebia mais, pois os artistas achavam que ele era mais importante. Sempre achei injusto isso, pois sabia que um monitor mal feito poderia acabar com o show. Ainda bem que esta diferença nos cachês não existe mais. Os próprios artistas reconheceram a importância do técnico de monitor.
Agora que vocês já sabem a diferença entre técnico de P.A. e de monitor, vamos voltar ao festival da Philips.
Rogério estava me contratando para este festival porque a empresa dele estava adquirindo uma mesa digital para ser usada nos monitores, eu já fazia monitor e tinha uma certa afinidade com estas mesas pois trabalhei com uma bem simples no estúdio e ele achava que não tinha pessoa mais indicada pra isso na época (modéstia à parte, mas era verdade). Mas mesmo com esta afinidade, falei pra ele que era muito diferente a minha mesa para a que ele estava comprando. Seria a primeira mesa digital nos monitores em Pernambuco! Uma Yamaha DM2000. Ele me falou (e meu erro foi acreditar) que a mesa chegaria uma semana antes do começo do festival, dando tempo assim para eu dar uma estudada nela. Resumindo... a mesa chegou na tarde do dia anterior da passada de som com as bandas do festival! Ficamos toda tarde e entramos pela madrugada só para aprender o básico sobre a nova mesa! Não deu outra. Catástrofe na passada de som! Não tinha como naquele espaço de tempo dominar o brinquedinho, pois aprendi só o básico! Para complicar mais ainda, as atrações eram gringas e tinha um tal de Ray Leman (não sei se era exatamente assim o segundo nome) que usaria até um piano acústico na sua apresentação com banda. Esse Ray era um daqueles artistas que dão “chilique” quando as coisas não estão acontecendo como querem. E esses chiliques tornaram a passada de som muito mais agonizante e estressada! Coisas que eu fazia rapidamente com uma mesa analógica, não estava conseguindo fazer nesta nova mesa. Coisas que eu tinha certeza que estava fazendo certo, os músicos me confirmavam o contrário! Só fui descobrir os motivos uma semana depois quando ligamos a mesa no galpão da firma e procuramos aonde foram os erros. Não tinha como saber desses detalhes naquele espaço de tempo.
Os produtores locais do festival (os mesmo do Abril Pro Rock – Paulo André e Melina), sem saberem os reais motivos de tal demora na operação do equipamento, já desesperados, pediram pra chamar outro técnico para me ajudar, mal sabendo eles que o outro técnico jamais tinha trabalhado com tal mesa também. Ninguém em Recife tinha trabalhado com aquela mesa!!!!!
Lindemberg chegou do meu lado e perguntou: --- Oi Titio, qual é a bronca?
Eu apontei para a DM2000 e respondi, perguntando: --- Quer assumir a mesa?
Não? Então fica do lado aí pra ver se eu resolvo. (Risos. Só agora, porque no dia eu não ri)
Ele ficou ao meu lado sem saber o que estava acontecendo direito, mas isso deu mais tranquilidade aos produtores. A pressão foi grande! O produtor nacional da Philips chegou aos berros ao meu lado me chamando de incompetente e perguntando se eu nunca tinha visto aquela mesa, e eu com minha sinceridade brutal, respondi esquecendo completamente dos meus amigos da empresa de som que tinham me contratado: ---Não cacete! Vi esta porra desta mesa ontem!!!
Não consegui me conter. Já estava completamente estressado. Agora, escrevendo este texto, me pego rindo da situação, mas não foi nada engraçado no dia!! Se não me falha a memória, duas passadas de som foram extremamente estressantes. Essa de Ray e outra de um grupo de velhinhos de Cuba que não recordo agora o nome. Fui no decorrer das passadas de som e dos shows me tornando mais rápido, mesmo fazendo um caminho mais longo para chegar aonde queria, pois não sabia que tinha outro caminho. Mesmo com toda a pressão e estresse, passamos todas as bandas e agora só restava esperar o começo do festival.
A grande ansiedade agora era saber se as cenas de cada banda que foram gravadas na mesa digital iriam voltar exatamente como foram salvas. Essa é uma das grandes vantagens meus caros leitores das mesas digitais em festivais, aonde têm várias bandas para se apresentarem no mesmo palco com o mesmo som. Podemos gravar tudo que foi feito para cada banda na mesa: equalização, endereçamento, compressão, etc, etc. E com um simples toque esta cena volta em menos de um segundo na hora da apresentação da banda. A demora maior agora era para religar os cabos nos seus devidos lugares, pois eles mudam de acordo com cada banda. Antes das mesas digitais, todo técnico tinha que anotar TUDO em mapas (papel) e seguir este mapa e retornar (ou pelo menos quase) os controles para o lugar marcado. Nunca voltava exatamente do mesmo jeito, mas funcionava e funciona até hoje quando a mesa não é digital. Conheço técnico (Léodim – Mundo Livre S/A) que tira foto da mesa com câmera digital e faz isso até hoje e já tentei usar a muito tempo atrás um gravador K7 portátil, aonde gravava minha voz falando o que tinha feito em cada canal. Não deu certo, pois quando estava escutando a gravação, sempre aparecia alguém gritando alguma coisa ao meu lado e eu me perdia. Uso mapas até hoje nas mesas analógicas.
Voltando ao evento...
Todas as cenas voltaram como queríamos e todos os shows transcorreram sem que ninguém que foi ver o evento soubesse o que tinha acontecido nas passadas de som. Não me recordo de ter havido nem um apito sequer em nenhum show.
No final do festival, depois de tudo certo, Rogério veio me agradecer pelo resultado, pois só ele sabia realmente o tamanho da fogueira que tínhamos acabado de pular sem nos queimar!!!
Achei realmente que poderia ser minha culpa naquele festival, pois nunca tinha sido chamado de incompetente, mas hoje quando lembro, rio e me orgulho da situação que consegui reverter.
Existe até hoje uma discussão sobre qual a melhor mesa: analógica ou digital?
Mas isso já é assunto para um outro tema.
Um abraço a todos.
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